Igreja semi submersa de Petrolândia

A presença dela em meio ao lago do reservatório sinaliza um lugar que foi destruído e que às pessoas que ali habitavam foi imposta a necessidade de refazer todo um modus vivendi.

Essa tem história

Em 1942, Petrolândia é contemplada, através do decreto lei nº 4.505, com a criação do Núcleo Colonial Agro-Industrial São Francisco, dentro do processo de instalação de colônias agrícolas nos diversos estados do país programado pelo governo Vargas. Este seria o primeiro assentamento realizado pelo Estado, em um perímetro irrigado, destinado à colonização de agricultores sem terra no Vale do Submédio São Francisco.

O Núcleo, a princípio, era formado por 100 lotes irrigados, de quatro hectares, contendo uma casa para abrigar a família de um trabalhador e outra para colono, que recebia semente, mudas e aves, além de assistência técnica e infraestrutura capaz de absorver a produção. O colono se obrigava a pagar o lote em 13 anos, com três de carência.

Compondo esse Núcleo funcionava fábrica de laticínios, charqueada, aviário com capacidade de criação de 400 mil aves, cujos os ovos eram comercializados nos grandes centros, fábrica de salsicha e linguiça, Usina beneficiadora de arroz e milho, Fabrica de doces e extrato de tomate, oficina mecânica, marcenaria, um Hospital Regional, clube social e escola, entre outros.

Esse projeto serviu também como piloto para as ações de reorganização do ensino rural do Brasil, visando o incremento na produção agrícola, estimulada pela Comissão Brasileiro-Americana de Produção de Gêneros Alimentícios, em convênio firmado durante o ministério de Apolônio Sales na pasta da agricultura do governo de Getúlio Vargas.

Em paralelo, em 1945, é autorizada a criação da Companhia Hidrelétrica do Rio São Francisco (CHESF), abrindo crédito para a organização da companhia e lhe outorgando concessão para aproveitamento da energia hidráulica do rio São Francisco, no trecho compreendido entre Juazeiro (BA) e Piranhas (AL).

Foi nesse contexto que a Igreja do Sagrado Coração de Jesus começou a ser construída. Projetada para um futuro de desenvolvimento, assim como foi no passado  com a Estrada de Ferro, o prédio assume contornos de Catedral e logo um pequeno centro comercial de forma em seu entorno.

Ocorre que, após o fim da era Vargas, a administração do Núcleo entra em crise por falta de continuidade dos programas ,em virtude das mudanças de governo e consequentes mudanças do órgão gestor responsável. Iniciada sob o comando da Comissão do Vale, a administração é transferida para a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUVALE, depois SUDENE e por fim CODEVASF.

 Obviamente essa descontinuidade também se refletiu na construção da igreja. Cessam os recursos públicos. As esposas dos colonos, principalmente, passam a promover ações de arrecadação de recursos a fim de tocar a obra. Rifas, festas e leilões são organizados a fim de arrecadar recursos. Desta forma conseguiram que o interior do templo ficasse em condições de realizar celebrações e o povo não precisasse mais se deslocar para a cidade a fim de realizar casamentos, batizados e outras atividades religiosas.

Mas o templo era grande, um projeto nada modesto. Sem a ajuda de recursos públicos, como no início, as obras se arrastaram lentamente até que, em 1970, a administração do Núcleo é avisada que nenhuma obra poderia ser continuada, em virtude da construção da Barragem de Itaparica. Foi como o anúncio de uma catástrofe.

Até 1970 as usinas hidrelétricas (UHES) Paulo Afonso I e II já estavam concluídas. De acordo com o estudo de aproveitamento do rio, além de Paulo Afonso ser um ponto estratégico devido à presença de quedas naturais de água, era preciso construir um reservatório acima (a montante) a fim de viabilizar ainda mais os setores produtivos ligados à industrialização. Foi então que rapidamente foi executado o projeto da barragem de Sobradinho que desalojou cerca de 70 mil pessoas com indenizações irrisórias através de um desastroso reassentamento mal planejado e sem a participação da população. Ciente das consequências sofridas pelo povo de Sobradinho, a população do submédio São Francisco começa a organizar-se na busca por seus direitos à terra. Disto, então, resultou a pressa da CHESF em construir Itaparica – coincidindo com o período do “milagre econômico”.

Os sindicatos foram trincheiras erguidas ou reerguidas para os primeiros momentos de organização. Garantir esses espaços de representação e institucionalidade era, a antes de tudo, garantir a existência das condições de luta. Não podemos perder de vista que estávamos sob os auspícios do AI-5 e que a ditadura, apesar de estar tendo problemas com o crash do “milagre”, permanecia todo-poderosa em termos repressivos.

A tarefa de fazer reuniões e construir sindicatos não correu como água. Além das homilias dos padres do lado da Bahia, a religiosa Josefina, sediada em Petrolândia, lançou mão de táticas ligadas ao cotidiano para abrir diálogos com o povo. Segundo ela mesma, uma das maneiras de se reunir fora dos sindicatos, pois esses eram vigiados e proibidos de fazer reuniões, era usar de certas manifestações religiosas.

A luta política e o verbo organizar misturavam-se às manifestações de fé que eram parte importante daquela cultura. As posições de Josefina com certo apoio da CPT e da Regional Nordeste II da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) davam autoridade para esses sujeitos se manterem em contado com sua pratica religiosa.

“A manifestação de fé que eu aproveitei muito delas mesmo era as novenas tinha novena em tudo que é comunidade… tinha um santo tinha novena em todas as comunidades e eu participava de todas porque não havia como ou o sindicato convidava as pessoas num momento em que o sindicato ainda não assumia não tinha mudado a diretoria o sindicato não assumia eles então ia comigo e ficava dentro do carro com medo” ( Josefina)

 Para Josefina, as novenas eram a princípio um lugar para pregar o Evangelho, mas com o passar do tempo as pessoas já associavam sua novena às questões políticas e organizativas.

Neste contexto, aqui temos um símbolo. As ruínas da Igreja simbolizam a resistência da memória de um município desterritorializado e reterritorializado, para além da destruição dos laços humanos ali tecidos, sendo a única construção remanescente do período.

Junto à igreja, sob aquele espelho d´água, há também, memórias de infância, de trabalho, reuniões , debates, embates e de outros modos de ser. Há, afogadas ali, salas onde se ouviram histórias, cozinhas que ajuntaram famílias. Sob aquele lago, marcado pela presença da Igreja do Sagrado Coração de Jesus onde foram batizadas gerações, jazem lugares de primeiros beijos, intrigas, começos e fins de amores. A presença dela em meio ao lago do reservatório sinaliza um lugar que foi destruído e que às pessoas que ali habitavam foi imposta a necessidade de refazer todo um modus vivendi, como antes vinculado ao rio, mas hoje relacionado às marcas deixadas em todos os atingidos por barragens mundo à fora.

Por isso é que, além da beleza da paisagem rara, tão importante para o desenvolvimento turístico de Pernambuco e do Brasil, chegando a figurar na internet entre as nove magníficas cidades submersas do mundo https://www.viajali.com.br/cidades-submersas-no-mundo/, o conjunto da paisagem que tem a Igreja como principal referência, perfeitamente enquadra-se na definição adotada pela UNESCO no que se refere à paisagem cultural “ilustrativas da evolução da sociedade e dos assentamentos humanos ao longo do tempo, sob a influência de condicionantes e/ou oportunidades físicas apresentadas pelo seu ambiente natural, e de sucessivas forças sociais, econômicas e culturais, tanto externas quanto internas”. . . As ruínas da Igreja resistindo ao afogamento é memória de um modo de vida, história de luta, fé e resistência de um povo e diz muito sobre a história de desenvolvimento do Nordeste.

Assim, através do processo administrativo Secult nº 015/2020,de 11.01.2021, “em razão de sua importância histórica e simbólica”, a Fudarpe deferiu a proposta de tombamento apresentado pelo  do IGH de Petrolândia. Hoje a Igreja do sagrado Coração de Jesus encontra-se sob mesmo regime de preservação dos bens tombados de acordo com a legislação estadual, Lei nº 7.970/1979 e Decreto nº 6.239/1980.

Pesquisa:

Paula Rubens e Milena Gomes ( IGH – Petrolãndia )  

João Vitor ( MOVIMENTO RIO DE LUTAS – Paulo Afonso – BA)

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